Disrupção: Tudo com Raphael Rocha Lopes
A fórmula antiga do antisséptico Merthiolate era o terror da criançada
“♫ Tá todo mundo atirando pedra/ Com uma vida cheia de pecado/ Cada um fazendo a sua regra/ Ninguém mais pode pensar o contrário/ Mas eu apanho de todos os lados/ Eles dizem que eu sou polêmica” (No tempo de intolerância; Elza Soares).
Meus leitores mais assíduos já sabem o que penso sobre o merthiolate. Na realidade, sobre o merthiolate contemporâneo, aquele que não arde. As mães perderam o prazer de poder dizer “Engole o choro” quando passavam no machucado dos filhos aquele líquido do capeta, ardido como ele só, naquela pazinha nada higiênica. Gerações foram moldadas na base do merthiolate que arde.
Ares-condicionados em profusão também estão amolecendo as atuais gerações. Fiz meus primeiro, segundo e terceiro graus sem ar-condicionado nas salas de aula. Em casa também levamos tempo para ter um. E por mais que se diga que a temperatura média global esteja aumentando, nada justifica alguns dramas de pessoas que não aguentam dias um pouco mais quentes. Hoje em dia alunos brigam por causa da temperatura do aparelho.
O que isso tem a ver com intolerância?
O leitor é inteligente e já entendeu onde quero chegar. Não nego que os benefícios da tecnologia são bem-vindos. É bacana ter um remédio antisséptico que não arda ou poder trabalhar ou estudar no conforto de um ambiente refrigerado. Sem dúvida. O problema é o amolecimento físico e moral que isto está causando nas novas gerações e, estranhamente, contaminando gerações que tinham medo do mertiolate e estudaram sem ar-condicionado.
Este amolecimento está provocando uma intolerância generalizada. Tudo podem e nada devem. Bufam se chegam em algum lugar que não esteja na sua temperatura de preferência; estão cheias de mimimi em qualquer discussão intelectualmente um pouco mais elevada; resistência à dor, ao esforço e ao trabalho estão caindo a cada ano (a não ser que seja para fazer alguma coisa que eles queiram).
Mas o que esperar dessas crianças e jovens quando se vê cada vez mais uma espécie de desrespeito coletivo e generalizado. Vou dar três pequenos (mas de consequências gigantescas) exemplos que vi nos últimos três dias: pai e filho pré-adolescente furando a fila em um bufê de sobremesas; mãe estacionando seu automóvel em local proibido (e ainda na calçada e em frente a um portão) para deixar seu filho na escola (sim, na escola!!! Leva o filho para aprender e o exemplo que dá é de infrações); e deputados andando de carro com giroflex para ter vantagens no trânsito.
O catalisador
O leitor também sabe que sou fã da tecnologia do mesmo jeito que sabe que tenho algumas críticas quanto ao modo como a estamos utilizando. A internet, indiscutivelmente, democratizou muitas coisas, inclusive, infelizmente, a imbecilidade. Na internet vemos de tudo, de bom e de ruim, do melhor e do pior. Saber separar o joio do trigo está cada vez mais difícil. Fake news com cara de notícia ou deturpações bem disfarçadas geram muita confusão e iludem muita gente bem-intencionada.
Quanto se trata de intolerância, porém, a internet, especialmente pelas redes sociais e no espaço de comentários de quaisquer notícias, é um campo fértil. Tudo é motivo para xingamentos, ameaças, sandices, absurdos de todas as naturezas. Aquelas crianças que não conhecem o verdadeiro mertiolate, que sempre estiveram em ambientes climatizados, que furam filas com seus pais, estão se transformando em jovens intolerantes ignorantes e, por conta do volume crescente, contaminando, não sei como, adultos que pouco tempo atrás criticavam esses comportamentos.
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